10 de jun. de 2017

Fé - o segredo sagrado de cada pessoa

Janilson Sales de Carvalho


            A música “Romaria” é um dos mais belos momentos do cancioneiro brasileiro. Renato Teixeira soube expressar a força da fé que existe em qualquer ser humano. Essa força pode ser compreendida no verso: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar”. A humanidade precisa do sagrado. 
                Outra música que nos remete ao mesmo tema é “Andar com fé” de Gilberto Gil. Me pego de vez em quando entoando os versos: “Andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá/ Mesmo quem não tem fé a fé costuma acompanhar”. A fé é uma relação íntima com o sagrado. As igrejas e os templos exercem um papel importante na reunião de fiéis, mas a fé acontece  individualmente. Estar junto em atos religiosos é questão de escolha pessoal. Uma ótima escolha, sem dúvida. 
          As procissões sempre me impressionam. Cada pessoa está ali por um motivo especial, dialogando com o sagrado. São milhões de depoimentos íntimos. É uma força extraordinária que pode ser compreendida apenas observando o olhar de cada um.  O mesmo olhar do homem de fé da música de Renato Teixeira que possivelmente diria: "a fé não costuma faiá".
  Pude observar essa força em 2016 no momento de uma consulta da minha nora na Maternidade Divino Amor  em Parnamirim/RN. Existe no salão central do prédio uma imagem coberta de terços.  Olhei demoradamente e não reconheci a figura sagrada que ela representava. Seria Santa Terezinha? Santa Rita?
              Cada terço passou a fazer parte daquela imagem, marcando um momento de intensa conexão com o divino. Com certeza, familiares e amigos das parturientes depositaram ali seus terços preferidos, utilizados em muitos momentos de relação íntima com a fé.

             Fiquei algumas horas acompanhando os procedimentos de exame da minha nora. Durante esse tempo,  muitos  casais jovens e adultos circularam pelos consultórios.  Mães partiram com seus bebês protegidos em belas mantas. Pais esperaram ansiosos informações sobre os partos. Familiares formaram pequenos grupos falantes em estado de espera. De vez em quando, alguém tocava a imagem rapidamente e depois seguia para algum lugar do prédio,  em silêncio.  Ali, o rezar no olhar e a fé no toque carinhoso na imagem revelaram  que cada um estava ligado ao sagrado por uma força de esperança íntima e intensa.

31 de mai. de 2017

Iemanjá – rainha de todas as praias brasileiras

Janilson Sales de Carvalho




Caminhando numa bela manhã de abril de 2016 na Praia dos Ingleses, em Florianópolis/SC, encontrei uma imagem de Iemanjá semelhante a que existe na Praia do Meio no litoral de Natal/RN. Ela é bem menor e não está instalada na areia da praia, ficando próxima ao casario. Também não está de costas para o mar como se dele saísse. Pelo contrário, é como se olhasse o mar recebendo os homens que regressam. Aos seus pés, velas acesas.
A praia catarinense é ainda de pescadores. Essas pequenas diferenças nas duas imagens me remeteram a um texto escrito pelo escritor paulista João Antônio, onde ele cita que “os trabalhadores das águas têm dois amores, um bem da terra e um bem do mar”. As posições das duas imagens indicam que a rainha está nesses lugares protegendo a partida e a chegada. Um amor eterno e zeloso. Além de referir-se a esse bem protetor, o escritor também define e descreve a rainha das águas nas suas diversas representações na cultura humana através dos séculos. Eis o texto:
 
As suas cores são o azul e o branco. Ela é vaidosa, sobrepaira, sereia, tem muitos nomes, um mais bonito que o outro, manhosa, cismada, caprichosa e prefere que a presenteiam com flores, dengos, vidrilhos, pentes, broches, perfumes, doces, brincos, espelhos, revistas femininas e coloridas, joias, bonecas, mimos, brinquedos. E que a salvem: “Odoiá, Iemanjá!”. É também Janaína, dona Janaína, Marabô, Oloxum, Inaê, Princesa do Aioká, Dandalunda, Mãe D’Água, Sereia Mukunã...Tem poderes. Fecha ou abre o mar para os saveiros e para as jangadas  e os trabalhadores das águas têm dois amores, um bem da terra e um bem do mar. O bem da terra é uma , a que fica na beira da praia quando o pescador sai e parte. O bem do mar  é o mar que, acho, não tem começo nem fim o mar e os mares, acabam onde os meus, os teus olhos e olhos nenhum alcançam, é tudo bonito. E é feio, o mar; brabo, mete medo.  (A um palmo acima dos joelhos – João Antônio)



O reino das águas é enigmático. Os trabalhadores do mar vivem uma aventura diária. A imensidão dos oceanos conduz todas as grandes narrativas humanas. A “conversa de pescador” é algo que sempre nos lança no imaginário fantástico. Nós, nas nossas salinhas com celulares nas mãos, jamais sentiremos a força das águas profundas ou das ondas gigantes. Também não entenderemos a força sagrada que emana da Rainha do Mar. No máximo, recorremos ao ritual de ano novo apelando para um banho que nos limpe das  mazelas do passado.
Os povos do mar sabem muitos segredos e, baseando-se neles, Jorge Amado nos proporcionou belas histórias nos seus livros. Muitas ainda não foram contadas em textos, porém, diariamente, são relatadas em cada beira de praia onde residem pescadores. Só eles podem falar da bela mulher vestida de azul e branco que fecha ou abre o mar para saveiros e jangadas. “Odoiá, Iemanjá!”   

29 de mai. de 2017

Memorial da Esperança


Janilson Sales de Carvalho
                A palavra "Esperança" tem muito significado na minha vida. Escrevo com letra maiúscula porque foi assim que ela apareceu na minha história. Meu pai nasceu em Nova Esperança, um distrito do município de Várzea no Rio G. Norte. Esse lugar agradável ainda concentra muitos familiares. Minha mãe também nasceu em Várzea, mas na sede do município.
                Logo após o casamento decidiram morar em Natal. Ali, durante vários anos peregrinaram por diversos bairros em casas alugadas. Nesse período nasceram os cinco filhos. A vida difícil impedia a compra de um imóvel. Foi na década de sessenta que a palavra “Esperança” se concretizou outra vez no destino da família no momento em que meu pai foi selecionado para receber uma casa na Cidade da Esperança, bairro popular idealizado pelo governador Aluízio Alves.  Naquele momento encontramos um porto seguro.
                Se meu pai foi o navegador que levou a família de uma Esperança a outra, minha mãe foi a pessoa que a incutiu em nossas vidas pelos caminhos da fé. Ele era um homem ocupado com o sustento e não se envolvia com temas religiosos. Era um grande leitor e nos repassava com convicção suas opiniões sobre os fatos do mundo. Acredito que era um dos homens mais bem informados do bairro. Ela participava da vida religiosa e conduzia a filharada nesse percurso. E a “Esperança” ganhou novo significado nas palavras do padre Tarcísio e na imagem de Nossa Senhora da Esperança, padroeira do bairro.
                Lembro-me de uma frase que ouvi de um colega: “domingo era dia de praia, missa e festa no Clube Intermunicipal.” Concordei com ele. Muitos jovens do bairro faziam esse roteiro. Como se vê, a igreja constava como elemento importante na rotina. Temos em janeiro a festa da padroeira, um evento importante que reúne os católicos.
      Há alguns anos, o filósofo Edgar Morin realizou uma palestra para milhares de pessoas no anfiteatro da UFRN e repetiu a palavra “esperança” diversas vezes. Cada vez que ele citava, eu refletia sobre o seu significado na minha vida. Como ela era preciosa para mim, pois representava meu lar e a fé na realização dos sonhos. Para onde eu iria sem ela? Nesse momento veio à mente a grande emoção provocada pela procissão anual com a  imagem da padroeira do bairro. Silenciosamente, a santa une pessoas, famílias e multidões num grande rio de esperanças. A “esperança” existe outra vez como um porto seguro, agora na imagem da mãe de Jesus.


                No feriado da Semana Santa de 2017, tive o prazer de passear em Monte Alegre/RN com minha mãe Lourdes, a grande amiga Nazaré  e a querida prima Socorro. Esse município entrou na minha vida no momento em que conheci minha esposa. É um belo lugar próximo a Natal. Lá também existe um bairro chamado Esperança. Antigamente era identificado como Rua da Palha devido às moradias pobres que ali existiam.  Hoje é um belo lugar com centenas de casas de alvenaria. Acredito que em cada lar existe uma história parecida com a minha. Nesse passeio, chegamos ao bairro. Minha mãe e as amigas ficaram encantadas com a nova igreja construída. A esperança transformou a palha em alvenaria, cimentando o amor entre as pessoas. E Nossa Senhora da Esperança está lá, no alto da igreja, fazendo com que todos mirem o tempo, amem a vida e caminhem com “Esperança”.

10 de mai. de 2017

O Bar de Avelino

Janilson Sales de Carvalho


                As grandes revoluções no campo das artes sempre foram provocadas pela reunião de artistas de vários talentos em um mesmo espaço. Isso foi um fenômeno constante na Europa e aconteceu também no Brasil. Podemos considerar a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em 1922, como o evento mais conhecido. A partir daí, dezenas de encontros aconteceram e acontecem pelo país. Alguns atingem grandes repercussões, como a Tropicália e o Mangue Beat. Outros contribuem para novas experiências em bairros ou cidades periféricas dos grandes centros. O bom disso é que tudo que fazem deixa uma herança positiva nessas comunidades.
A Cidade da Esperança, desde a sua fundação nos anos sessenta, sempre foi um espaço povoado por artistas. Lembro-me que nessa década, o clube de mães encenava peças em datas comemorativas. De alguma maneira, esses grupos sempre buscaram uma forma de convivência em algum espaço. Naturalmente, por tratar-se de um bairro de trabalhadores, o tempo para os encontros sempre foi um elemento difícil e isso contribuiu para que tivessem curta duração. É um problema que precisa ser resolvido com a união de todos.


Uma das últimas tentativas para reunião desses grupos foi feita pelo artista plástico Avelino Pinheiro com a inauguração do Bar do Avelino, em sua residência na Rua Santa Cruz. Esse espaço durou aproximadamente um ano e foi extremamente rico em experiências artísticas. Durante esse tempo, músicos, cantores, pintores, escritores e poetas compartilharam boas conversas e ótimos espetáculos.  


                Um fato interessante é que havia sempre um violão disponível e qualquer cliente que soubesse tocar poderia abraçar o instrumento. Nessas ocasiões, outros clientes apoiavam  com uma percussão improvisada ou bem esboçada em um pandeiro. A festa rolava alegre e sem pressa. Em alguns momentos, Avelino nos brindava com a sua bela interpretação como sósia  de Bel Marques. Era o nosso Belvelino.

                 O Bar do Avelino se foi como tantos outros. Mostrou mais uma vez a riqueza artística que existe no bairro. Fez a sua parte. Fica a saudade.  

29 de mar. de 2017

Geraldo Carvalho e a arte de lapidar joias musicais

Janilson Sales de Carvalho

            A etimologia do nome "Geraldo" nos informa que ele tem origem alemã e significa: "o senhor da lança" ou "guerreiro forte". Esses conceitos identificam alguém determinado e destemido em suas ações. Se formos observar o campo da arte musical brasileira, teremos "Geraldos" que atuaram e atuam expressivamente nos presenteando com belas músicas e histórias. Entre eles temos: Geraldo Vandré, Zé Geraldo e Geraldo Azevedo. Qualquer relato de vida desses artistas revela uma luta imensa pela conquista de público e espaço. Tais exemplos são seguidos fielmente pelo Geraldo potiguar, nosso Geraldo Carvalho.
            Uma das conquistas recentes desse artista pode ser comprovada no convite feito pela Fundação José Augusto para uma apresentação como cantor convidado no  Dia da Poesia de 2017, em Natal. Esse importante evento já trouxe como convidados Chico César e Adriana Calcanhoto. Geraldo Carvalho está  residindo em Brasília, só vindo a Natal nos períodos de férias. O fato importante é que ele recebeu convite oficial do órgão responsável pelos projetos de cultura do estado. Só tenho a dizer que foi uma conquista por merecimento.
            Desde o seu primeiro cd, a poesia potiguar é vestida com os trajes da música e ganha novos espaços e novos admiradores. Vale ressaltar que esse músico não buscou em nenhum momento o jogo simplista dos belos versos com notas rápidas e fáceis. Pelo contrário, cavou profundamente a sintonia entre a proposta sensível dos versos e o ritmo e a sutileza das notas musicais. Isso pode ser  percebido nos poemas de Ferreira Itajubá, Haroldo de Campos e Jorge Fernandes musicados no primeiro cd. Vale lembrar que o poema "Manhecença", de Jorge, é o título desse disco.

            Geraldo Carvalho é um artista extremamente exigente com o próprio trabalho. Os dois cds,  "Manhecença" e "Um toque a mais", resultam de um profundo senso crítico e por isso agradam plenamente. As suas parcerias com Antonio Ronaldo, J.Medeiros, Romildo Soares, Franklin Mário, entre outros, têm contribuído para criação de belas músicas. Tenho "Preso no aquário", de Franklin Mário e William Guedes, como uma das preferidas. 
            Sem dúvida, a elaboração musical do potiguar pode ser inserida na mesma labuta descrita no poema "A um poeta", de Olavo Bilac, que revela o esforço trabalhoso na criação dos versos, mas também, por semelhança, na de qualquer obra de arte feita com seriedade e paixão. Os verbos-versos estão lá : "Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua."

            Há alguns anos, um artista de Natal comentou comigo que achou um erro Geraldo não ter colocado uma foto do rosto na capa frontal do primeiro cd. Naquela capa, um vulto segue tranquilo em alguma direção. Pensei um pouco sobre isso. Faz um bom tempo que conheço Geraldo e não me lembro de nenhum momento em que a "fogueira das vaidades" tenha ocupado a sua fala ou gestos. Lembro-me apenas da alegria e generosidade com que compartilha uma nova música com todos.
            Sempre vi simplicidade e elegância nas músicas do potiguar. Retomo o poema de Olavo Bilac, quando conclui: "Porque a beleza, gêmea da Verdade/ Arte pura, inimigo artifício/É a força e a graça da simplicidade." É no alicerce dessa bela simplicidade  que o potiguar está preparando seu próximo cd com lançamento programado para este ano em Natal. Será outra obra-prima feita pacientemente no longo intervalo após o último disco.  Esse tempo é fundamental para lapidação de mais uma bela joia. É por esse zelo respeitoso com o público que o nome de Geraldo Carvalho deve figurar entre os grandes Geraldos da MPB. São os nossos guerreiros fortes.

23 de fev. de 2017

Várzea - uma declaração de amor em concreto



Janilson Sales de Carvalho


            O escritor russo Leon Tolstói  é autor de uma das mais belas frases do pensamento humano: "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia". A ação de pintar pode ser estendida a escrever, falar, cantar e outras que revelem a intimidade com que  a terra de origem reverbera na alma e no coração dos seus nativos residentes ou distantes. Essa intimidade pode surgir numa obra de arte  ou simplesmente na apropriação emocional dessa obra pelos amantes daquela terra. Foi assim com a poesia  "Canção do exílio" de Gonçalves Dias. Generosamente, ele não cita o nome do lugar e deixa livremente o poema penetrar em cada alma ao declamar o verso "Minha terra". Com essa sutileza, os versos passam  a representar  todas as terras para todas as pessoas.
            A modernidade nos propicia outras maneiras de demonstrar o nosso amor pela terra-mãe. Queremos falar e mostrar para o mundo que amamos aquele lugar . Para nossa sorte,  muitos administradores públicos decidiram "concretizar" os nomes das cidades em objetos de arte, estrategicamente colocados em locais públicos. Assim, em fotos, nativos revelam para o mundo sua paixão pela terra e viajantes e turistas compartilham os lugares que visitaram.
            O fato é que a nossa terra-mãe está em nós, fincada nas nossas lembranças. Essas lembranças, boas ou ruins, são fundamentais para nossa construção pessoal. Fico triste quando alguém relata apenas passagens tristes de sua existência em algum lugar. A vida não é feita só de coisas alegres ou só de coisas tristes.  Ela é uma mistura espantosa de milhões de momentos que deixaram em nossa existência um rastro de experiências espetaculares. Cada rua é um roteiro de lembranças. Cada casa é um  museu de histórias. Cada pessoa é um personagem vibrante na vida de alguém.
            Andei por alguns lugares, mas minhas paixões ficaram vinculadas a Natal e Várzea. A minha vida cruzou amavelmente a ponte imaginária que liga essas cidades nos oitenta quilômetros que as separam. Como Tolstói, cada frase ou verso que escrevo sai mesclado de memórias e vivências nessas duas aldeias.
            Para minha alegria, Cleide de  Carvalho, ex-prefeita de Várzea, nos presenteou com a obra de arte que "concretiza" o nosso amor pela cidade. Eu e minha irmã Tânia ficamos encantados com a ideia.  Ali, misturado com as letras, deixei a minha alegria ser fotografada. Espalharei esta imagem em cada rede social e cada celular de amigo. A foto vai apenas gritar o nome da cidade que ocupa boa parte do meu coração. Não aparecerá nela a doce lembrança, nem a saudade profunda de Raimundo Rosa e Maria Onélia, meus avós maternos, estrelas que me guiaram, anjos que me protegeram e me ensinaram a amar Várzea.  

22 de fev. de 2017

Banana Brava - 75 anos do primeiro romance de José Mauro de Vasconcelos



Janilson Sales de Carvalho

José Mauro de Vasconcelos escreveu o romance “Banana Brava” em 1942 e convidou Luís da Câmara Cascudo para apresentação. Em seu texto, Cascudo relatou alguns dados biográficos e valorizou a grande aventura vivida pelo escritor na selva brasileira, espaço onde a narrativa acontece.
Uma das atitudes admiráveis de José Mauro era conhecer profundamente os lugares e os grupos humanos que seriam personagens nos seus romances. Aqui no Rio Grande do Norte, temos entre seus textos: “Barro Blanco”, que tem como personagens os trabalhadores das salinas de Macau; “Doidão” e “Vamos aquecer o sol”, baseados nas vivências da adolescência em Natal.

“Banana Brava” resultou dessa incursão na floresta e da descoberta do mundo violento provocado pela cobiça nos garimpos lá escondidos. O que se tem na literatura é o surgimento de viventes que jamais figuraram em romances nacionais. O filósofo Gilles Deleuze registra em “Crítica e Clínica”: “A literatura é delírio e, a esse título, seu destino se decide entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida que não para de agitar-se sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um suco para si na literatura”
Sem dúvida, José Mauro revelou em muitos dos seus textos essa “raça bastarda oprimida”. Lamentavelmente, as universidades ainda não autorizaram seus alunos e pesquisadores a darem um mergulho na bela obra desse escritor. As poucas pesquisas realizadas abordam o romance “Meu pé de laranja lima”, seu texto mais conhecido.
Na apresentação escrita por Cascudo, o seguinte trecho remete ao tema discutido por Deleuze: “Dos seus meses na Terra dos Homens sem Piedade, nas Terras Ensanguentadas, nos Garimpos onde viceja e jamais frutifica a Banana Brava, veio esse romance, rude, claro, luminoso de verdade natural, de grandeza humana e fabulosa. É a voz que conta a viagem estranha ao Mundo onde ainda vivem os Cavaleiros da Távola Redonda, com um programa sinistro de guerra, morte, abnegação e silêncio. Mundo limitado pelos grandes rios, pelas barreiras altas, pela floresta misteriosa, povoada de sonoridades apavorantes, inexplicadas e envolventes.” 
 “Banana Brava” completa 75 anos em 2017 e permanece desconhecido para maioria dos brasileiros. Os seus personagens continuam entranhados na selva, só aparecendo em manchetes sangrentas de jornais sensacionalistas. Mas, o romance foi escrito e está aí para ser lido. Saiu da coragem de um jovem de 22 anos que se embrenhou na selva para descobrir esse povo e suas histórias. É hora desse povo (e de cada brasileiro) descobrir José Mauro de Vasconcelos.

10 de fev. de 2017

Yrahn Barreto e a nova geração dos "malditos"



Janilson Sales de Carvalho

                Os artistas são sempre  figuras surpreendentes. São, ou devem ser, transgressores e, por isso, assustam. Os que não surpreenderam com a sua arte, sumiram na poeira. Por sinal, a poeira será o destino da maioria das "elaborações sonoras" (não me atrevo a chamar de "músicas") que estouram nos programas de rádio e de tv aberta. Fazer o quê? Precisamos entender que é uma indústria como a de frangos ou de peixes. Embala-se, vende-se, ganha-se milhões, bilhões, zilhões em algumas semanas, pois a coisa tem prazo de validade e é altamente perecível.Mas o troço, nesse modelo, funciona e bem.
                Mas, como afirma Deleuze, há uma linha de fuga. A Internet tem contribuído para que novos artistas, talentosos e transgressores, divulguem seu trabalho e conquistem seu espaço no cenário da arte. Alguns programas de televisão aberta, pautam seus artistas consultando o número de visualizações que seus vídeos têm na rede mundial. Temos visto aparições repentinas e sumiços rápidos. Só o verdadeiro artista permanece após o furacão midiático das redes. Assim, o seu pequeno jardim no YouTube vai sendo visitado aos poucos, até se transformar numa imensa plantação de flores colhidas com paixão.
                Admiro muitos artistas. Eles têm as chaves da emoção. Entre tantos, guardo lugar especial para Sérgio Sampaio, um capixaba de Cachoeiro de Itapemirim que, apesar do grande talento, não teve o mesmo sucesso do conterrâneo Roberto Carlos. São histórias diferentes, rumos e vidas diferentes. A dimensão de Sérgio é outra e fica no planeta dos maravilhosos "malditos" na companhia de Lima Barreto, João Antônio, Torquato Neto, Paulo Leminski, Plínio Marcos e outros. Partiram e não sumiram na poeira. Deixaram foi uma bela estrada a ser seguida.

                Foi seguindo essa estrada, como fã, que encontrei um novo personagem da bela terra dos "malditos". No querido Bar de Aurino, na Cidade da Esperança, ouvi alguém tocando uma música de Sérgio Sampaio e segui até o local. Era um cabra chamado Yrahn Barreto, entoando uma música após a outra do meu querido "maldito" capixaba. Fiquei na plateia de olhos arregalados. Descobri que Yrahn montou um show em Natal, só com músicas de Sampaio.  Naquele dia tive a certeza: Natal tem muitos tesouros.
                Fiquei curioso e pedi que o novo "maldito" mostrasse suas músicas. Ouvi atento "Ao gosto dos anjos", feita em parceria com Romildo Soares. Só tenho um adjetivo: "espetacular". Como disse antes: "os artistas têm a chave da emoção." Não sou crítico musical, apenas gosto de boa música e bons artistas, pois melhoram o meu dia. Yrahn entrou na lista. Passei a ouvi-lo no carro e em casa. Tenho apenas o cd "Ao Gosto dos Anjos", ouço e leio o encarte com as músicas. Grandes parcerias com Romildo Soares, Jubileu Filho, Cadu Araújo e Antonio Ronaldo.
                Incluo na lista dos "malditos",  o paraibano Augusto dos Anjos que inspirou os dois músicos. Augusto lançou apenas um livro que acordou o ser humano para sua fragilidade. De vez em quando me deparo com bêbados, no rabo da madrugada, declamando poemas dele.  Olham para os presentes com dedo em riste, em grande performance, e proclamam:" O beijo, amigo, é a véspera do escarro/ A mão que afaga é a mesma que apedreja". Espetáculo para poucos.
                Na letra inspirada em Augusto, estão os versos : "Arranjo uma maneira/ De me negar asas/ E vou pisando descalço / As brasas da paixão". Negar asas é típico dos malditos que se atiram de peito aberto à vida. Foi assim com Sérgio Sampaio, é assim com Yrahn Barreto. Benditos “Malditos”.
                              

7 de fev. de 2017

A bela batalha do MSU no teatro da Esperança



Janilson Sales de Carvalho


                Muitos moradores não souberam que houve uma batalha na Cidade da Esperança no domingo, dia 29/01/17. Os guerreiros eram todos jovens e digladiaram por horas. Nenhuma gota de sangue e toneladas de alegria e poesia.  O ringue foi o velho e querido Teatro de  Arena, apelidado pela moçada como a “rodinha do padre” porque fica nas proximidades da igreja católica.  Eu, da velha guarda do bairro, me emocionei. Há quanto tempo não via aquele espaço ocupado e cheio de vida. Eu, que tantos belos momentos presenciei ali nos anos setenta e oitenta.

                Na parede uma inscrição: “Batalha da Esperança”. Batalha de MCs, de palavras, de versos, de pensamentos bem vivos. As torcidas ocupando as arquibancadas e ouvindo e vendo atentamente a performance de cada artista . Alguns MCs, muito poucos, apelam para palavrões. O ritmo acelerado do duelo força as rimas, exige a urgência da palavra mais fácil, mais pesada, mais corrosiva. Os palavrões são aqueles que ouvimos todos os dias, ditos por velhas figuras sérias no trânsito.  Isso não depõe contra o espetáculo. Entre versos mais elaborados, brotam citações e nomes de filósofos, figuras e fatos históricos. Estão bem atualizados. Lembrei-me dos duelos de violeiros ou de emboladores de coco. Contendores se movimentado, se olhando, se encarando e usando as lâminas finas das palavras como armas.   A plateia em delírio, ovacionando aos gritos, o seu preferido. No centro da cena, os lutadores e dois juízes para avaliação do duelo.

                Sem apoio público, a moçada do funk natalense leva o espetáculo para as periferias de Natal. Passei um pouco antes e vi os meninos trabalhando na limpeza e na organização do local. Soube que esse belo projeto chama-se “Movimento Síntese Urbana” e tem página no Facebook e em outras redes. Entendi que a arte pulsa, a vida segue e os meninos e meninas do MSU nos mostram que a vida é bela, bela, bela.