23 de fev. de 2017

Várzea - uma declaração de amor em concreto



Janilson Sales de Carvalho


            O escritor russo Leon Tolstói  é autor de uma das mais belas frases do pensamento humano: "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia". A ação de pintar pode ser estendida a escrever, falar, cantar e outras que revelem a intimidade com que  a terra de origem reverbera na alma e no coração dos seus nativos residentes ou distantes. Essa intimidade pode surgir numa obra de arte  ou simplesmente na apropriação emocional dessa obra pelos amantes daquela terra. Foi assim com a poesia  "Canção do exílio" de Gonçalves Dias. Generosamente, ele não cita o nome do lugar e deixa livremente o poema penetrar em cada alma ao declamar o verso "Minha terra". Com essa sutileza, os versos passam  a representar  todas as terras para todas as pessoas.
            A modernidade nos propicia outras maneiras de demonstrar o nosso amor pela terra-mãe. Queremos falar e mostrar para o mundo que amamos aquele lugar . Para nossa sorte,  muitos administradores públicos decidiram "concretizar" os nomes das cidades em objetos de arte, estrategicamente colocados em locais públicos. Assim, em fotos, nativos revelam para o mundo sua paixão pela terra e viajantes e turistas compartilham os lugares que visitaram.
            O fato é que a nossa terra-mãe está em nós, fincada nas nossas lembranças. Essas lembranças, boas ou ruins, são fundamentais para nossa construção pessoal. Fico triste quando alguém relata apenas passagens tristes de sua existência em algum lugar. A vida não é feita só de coisas alegres ou só de coisas tristes.  Ela é uma mistura espantosa de milhões de momentos que deixaram em nossa existência um rastro de experiências espetaculares. Cada rua é um roteiro de lembranças. Cada casa é um  museu de histórias. Cada pessoa é um personagem vibrante na vida de alguém.
            Andei por alguns lugares, mas minhas paixões ficaram vinculadas a Natal e Várzea. A minha vida cruzou amavelmente a ponte imaginária que liga essas cidades nos oitenta quilômetros que as separam. Como Tolstói, cada frase ou verso que escrevo sai mesclado de memórias e vivências nessas duas aldeias.
            Para minha alegria, Cleide de  Carvalho, ex-prefeita de Várzea, nos presenteou com a obra de arte que "concretiza" o nosso amor pela cidade. Eu e minha irmã Tânia ficamos encantados com a ideia.  Ali, misturado com as letras, deixei a minha alegria ser fotografada. Espalharei esta imagem em cada rede social e cada celular de amigo. A foto vai apenas gritar o nome da cidade que ocupa boa parte do meu coração. Não aparecerá nela a doce lembrança, nem a saudade profunda de Raimundo Rosa e Maria Onélia, meus avós maternos, estrelas que me guiaram, anjos que me protegeram e me ensinaram a amar Várzea.  

22 de fev. de 2017

Banana Brava - 75 anos do primeiro romance de José Mauro de Vasconcelos



Janilson Sales de Carvalho

José Mauro de Vasconcelos escreveu o romance “Banana Brava” em 1942 e convidou Luís da Câmara Cascudo para apresentação. Em seu texto, Cascudo relatou alguns dados biográficos e valorizou a grande aventura vivida pelo escritor na selva brasileira, espaço onde a narrativa acontece.
Uma das atitudes admiráveis de José Mauro era conhecer profundamente os lugares e os grupos humanos que seriam personagens nos seus romances. Aqui no Rio Grande do Norte, temos entre seus textos: “Barro Blanco”, que tem como personagens os trabalhadores das salinas de Macau; “Doidão” e “Vamos aquecer o sol”, baseados nas vivências da adolescência em Natal.

“Banana Brava” resultou dessa incursão na floresta e da descoberta do mundo violento provocado pela cobiça nos garimpos lá escondidos. O que se tem na literatura é o surgimento de viventes que jamais figuraram em romances nacionais. O filósofo Gilles Deleuze registra em “Crítica e Clínica”: “A literatura é delírio e, a esse título, seu destino se decide entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida que não para de agitar-se sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um suco para si na literatura”
Sem dúvida, José Mauro revelou em muitos dos seus textos essa “raça bastarda oprimida”. Lamentavelmente, as universidades ainda não autorizaram seus alunos e pesquisadores a darem um mergulho na bela obra desse escritor. As poucas pesquisas realizadas abordam o romance “Meu pé de laranja lima”, seu texto mais conhecido.
Na apresentação escrita por Cascudo, o seguinte trecho remete ao tema discutido por Deleuze: “Dos seus meses na Terra dos Homens sem Piedade, nas Terras Ensanguentadas, nos Garimpos onde viceja e jamais frutifica a Banana Brava, veio esse romance, rude, claro, luminoso de verdade natural, de grandeza humana e fabulosa. É a voz que conta a viagem estranha ao Mundo onde ainda vivem os Cavaleiros da Távola Redonda, com um programa sinistro de guerra, morte, abnegação e silêncio. Mundo limitado pelos grandes rios, pelas barreiras altas, pela floresta misteriosa, povoada de sonoridades apavorantes, inexplicadas e envolventes.” 
 “Banana Brava” completa 75 anos em 2017 e permanece desconhecido para maioria dos brasileiros. Os seus personagens continuam entranhados na selva, só aparecendo em manchetes sangrentas de jornais sensacionalistas. Mas, o romance foi escrito e está aí para ser lido. Saiu da coragem de um jovem de 22 anos que se embrenhou na selva para descobrir esse povo e suas histórias. É hora desse povo (e de cada brasileiro) descobrir José Mauro de Vasconcelos.

10 de fev. de 2017

Yrahn Barreto e a nova geração dos "malditos"



Janilson Sales de Carvalho

                Os artistas são sempre  figuras surpreendentes. São, ou devem ser, transgressores e, por isso, assustam. Os que não surpreenderam com a sua arte, sumiram na poeira. Por sinal, a poeira será o destino da maioria das "elaborações sonoras" (não me atrevo a chamar de "músicas") que estouram nos programas de rádio e de tv aberta. Fazer o quê? Precisamos entender que é uma indústria como a de frangos ou de peixes. Embala-se, vende-se, ganha-se milhões, bilhões, zilhões em algumas semanas, pois a coisa tem prazo de validade e é altamente perecível.Mas o troço, nesse modelo, funciona e bem.
                Mas, como afirma Deleuze, há uma linha de fuga. A Internet tem contribuído para que novos artistas, talentosos e transgressores, divulguem seu trabalho e conquistem seu espaço no cenário da arte. Alguns programas de televisão aberta, pautam seus artistas consultando o número de visualizações que seus vídeos têm na rede mundial. Temos visto aparições repentinas e sumiços rápidos. Só o verdadeiro artista permanece após o furacão midiático das redes. Assim, o seu pequeno jardim no YouTube vai sendo visitado aos poucos, até se transformar numa imensa plantação de flores colhidas com paixão.
                Admiro muitos artistas. Eles têm as chaves da emoção. Entre tantos, guardo lugar especial para Sérgio Sampaio, um capixaba de Cachoeiro de Itapemirim que, apesar do grande talento, não teve o mesmo sucesso do conterrâneo Roberto Carlos. São histórias diferentes, rumos e vidas diferentes. A dimensão de Sérgio é outra e fica no planeta dos maravilhosos "malditos" na companhia de Lima Barreto, João Antônio, Torquato Neto, Paulo Leminski, Plínio Marcos e outros. Partiram e não sumiram na poeira. Deixaram foi uma bela estrada a ser seguida.

                Foi seguindo essa estrada, como fã, que encontrei um novo personagem da bela terra dos "malditos". No querido Bar de Aurino, na Cidade da Esperança, ouvi alguém tocando uma música de Sérgio Sampaio e segui até o local. Era um cabra chamado Yrahn Barreto, entoando uma música após a outra do meu querido "maldito" capixaba. Fiquei na plateia de olhos arregalados. Descobri que Yrahn montou um show em Natal, só com músicas de Sampaio.  Naquele dia tive a certeza: Natal tem muitos tesouros.
                Fiquei curioso e pedi que o novo "maldito" mostrasse suas músicas. Ouvi atento "Ao gosto dos anjos", feita em parceria com Romildo Soares. Só tenho um adjetivo: "espetacular". Como disse antes: "os artistas têm a chave da emoção." Não sou crítico musical, apenas gosto de boa música e bons artistas, pois melhoram o meu dia. Yrahn entrou na lista. Passei a ouvi-lo no carro e em casa. Tenho apenas o cd "Ao Gosto dos Anjos", ouço e leio o encarte com as músicas. Grandes parcerias com Romildo Soares, Jubileu Filho, Cadu Araújo e Antonio Ronaldo.
                Incluo na lista dos "malditos",  o paraibano Augusto dos Anjos que inspirou os dois músicos. Augusto lançou apenas um livro que acordou o ser humano para sua fragilidade. De vez em quando me deparo com bêbados, no rabo da madrugada, declamando poemas dele.  Olham para os presentes com dedo em riste, em grande performance, e proclamam:" O beijo, amigo, é a véspera do escarro/ A mão que afaga é a mesma que apedreja". Espetáculo para poucos.
                Na letra inspirada em Augusto, estão os versos : "Arranjo uma maneira/ De me negar asas/ E vou pisando descalço / As brasas da paixão". Negar asas é típico dos malditos que se atiram de peito aberto à vida. Foi assim com Sérgio Sampaio, é assim com Yrahn Barreto. Benditos “Malditos”.
                              

7 de fev. de 2017

A bela batalha do MSU no teatro da Esperança



Janilson Sales de Carvalho


                Muitos moradores não souberam que houve uma batalha na Cidade da Esperança no domingo, dia 29/01/17. Os guerreiros eram todos jovens e digladiaram por horas. Nenhuma gota de sangue e toneladas de alegria e poesia.  O ringue foi o velho e querido Teatro de  Arena, apelidado pela moçada como a “rodinha do padre” porque fica nas proximidades da igreja católica.  Eu, da velha guarda do bairro, me emocionei. Há quanto tempo não via aquele espaço ocupado e cheio de vida. Eu, que tantos belos momentos presenciei ali nos anos setenta e oitenta.

                Na parede uma inscrição: “Batalha da Esperança”. Batalha de MCs, de palavras, de versos, de pensamentos bem vivos. As torcidas ocupando as arquibancadas e ouvindo e vendo atentamente a performance de cada artista . Alguns MCs, muito poucos, apelam para palavrões. O ritmo acelerado do duelo força as rimas, exige a urgência da palavra mais fácil, mais pesada, mais corrosiva. Os palavrões são aqueles que ouvimos todos os dias, ditos por velhas figuras sérias no trânsito.  Isso não depõe contra o espetáculo. Entre versos mais elaborados, brotam citações e nomes de filósofos, figuras e fatos históricos. Estão bem atualizados. Lembrei-me dos duelos de violeiros ou de emboladores de coco. Contendores se movimentado, se olhando, se encarando e usando as lâminas finas das palavras como armas.   A plateia em delírio, ovacionando aos gritos, o seu preferido. No centro da cena, os lutadores e dois juízes para avaliação do duelo.

                Sem apoio público, a moçada do funk natalense leva o espetáculo para as periferias de Natal. Passei um pouco antes e vi os meninos trabalhando na limpeza e na organização do local. Soube que esse belo projeto chama-se “Movimento Síntese Urbana” e tem página no Facebook e em outras redes. Entendi que a arte pulsa, a vida segue e os meninos e meninas do MSU nos mostram que a vida é bela, bela, bela.