Janilson Sales de Carvalho
Todo
lugar tem suas figuras inesquecíveis. O próprio Câmara Cascudo fez uma seleção
dos tipos natalenses em seu primeiro livro: “O livro das Velhas Figuras”. Elas
nos marcam pelos mais variados motivos como: talento em alguma atividade,
inteligência, beleza, feiura, algum tipo de deficiência, alegria pela vida,
vício, bondade, maldade, dedicação aos outros, etc. O fato é que os motivos são
os mais diferentes para fixá-las nas lembranças. Assim, uns amam e outros
detestam. Acontece com cada um de nós. Não sabemos realmente o que as pessoas
sentem ou pensam de nós. Acho que sempre queremos imaginar o melhor. Seguimos
nessa ilusão até que alguém nos espete com a sua verdade. Se fôssemos parar
para cuidar só disso, a vida seria insuportável. Por isso devemos seguir sem
muitos sobressaltos.
Hoje,
dia de finados, lembrei-me de Jorge Mário, o finado. Ele realmente faleceu, mas
a história do finado foi em vida. Um dia ele passou a chamar todo mundo de
finado. Leve-se em conta que trabalhou muito tempo com bares e a clientela
resolveu tratá-lo com a mesma alcunha e o finado ficou sendo ele. Apareceu o
“Bar do Finado”. Uma característica desse bar era a sua constante mudança.
Jorge se atrapalhava com algumas questões e os donos dos prédios pediam a
desocupação. Assim, o bar ocupou diversos endereços na Cidade da Esperança. Mas
a fiel clientela não o abandonava. Sem WhatsApp, a notícia corria pelo bairro: “O finado abriu
outro bar, está na rua tal.” E a turma seguia para lá.
Jorge
era dessas figuras que achavam que a alegria era algo permanente. Fazia o que
podia para as pessoas rirem. Naqueles anos, eu ensinava no noturno e escolhia a
sexta-feira para terminá-la no Bar do Finado. Após o trabalho, circulava pelo
bairro até encontrar o bar, caso estivesse ativo, ou Jorge, caso estivesse de
bobeira. Uma semana de canseira merecia terminar com alegria e bom humor.
Lembro-me
de um dia em que encontrei Jorge preocupado com a brincadeira de chamar todo
mundo de finado. Um cliente suicidou-se. Assim foi o relato: “Finado, eu chamei
um finado de finado e ele saiu daqui e se matou. Será que o finado levou a
brincadeira a sério e resolveu ser finado?” Fiquei sem resposta. Jorge adorava
os amigos e aquilo realmente o incomodou.
Talvez, aquele cliente tenha ido
se despedir da vida no lugar mais alegre e com a pessoa mais divertida que ele
conhecia. Coisas da vida. Sabemos de
relatos de suicidas que se despendem de lugares e pessoas antes do ato final.
Um
dos últimos bares ficava na Rua do Detran, vizinho a uma Igreja Batista. Jorge
resolveu assumir literalmente o nome do bar. Pintou de roxo, cor dos caixões
mais populares, e estampou o nome em letras garrafais: “Bar do Finado”. Pensei
em tirar uma foto, mas só me lembrava às sextas quando já estava no bar.
Naquele tempo, o meu aparelho de celular não tinha câmera. Algumas vezes ficava esperando alguém
desocupar uma mesa. Valia a espera. Como os outros, este durou pouco tempo, mas
valeu cada segundo.
Hoje,
Jorge é finado. Sucumbiu à tristeza. Só sei que a sua presença me afastou
inúmeras vezes dela. Lamento que não tenhamos tido a mesma capacidade de
plantar a alegria no seu coração nos momentos de sofrimento. Sei que alguns
tentaram. Possivelmente, 6nenhuma rua receberá seu nome. Isso nada importa.
Jorge é lembrado pelo que plantou de amizade e cultivou de alegria. Muitos não
o compreenderam. A sua alma dionisíaca não aceitava as regras, as normas. Foi
assim com Raul Seixas, foi assim com Jorge Mário, o finado. Hoje eles estão lá,
noutra festa.
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